Os contos coletados e editados pelos Irmãos Grimm
continuam vivos e atuais, mantendo como nunca seu poder de encantar crianças e
adultos, mesmo tendo se passado 200 anos desde a sua primeira aparição em
livro. A obra dos irmãos foi decisiva para moldar nossa concepção de Literatura
Infantil e impulsionar os estudos e a coleta de folclore, tendo contribuído
para diversas áreas, dentre as quais a filologia, a antropologia e a literatura
comparada.
Cinderela, Branca de Neve, Chapeuzinho Vermelho e tantos
outros personagens de contos de fadas nos acompanham desde as nossas primeiras
impressões de infância. São parte integrante de nossa cultura e formação como
leitores, fundamentais para estimular a nossa capacidade de imaginação. Os
personagens dos contos dos Grimm povoam filmes, desenhos animados, brinquedos e
uma infinidade de outros produtos e artefatos, de modo que podemos duvidar que
hoje possa haver alguém que nunca tenha ouvido falar no sapo que virou príncipe
ou na casinha de doces onde mora uma bruxa malvada.
Por volta do Natal de 1812, saiu o primeiro volume de
seus Contos de Fadas para o Lar e as Crianças (em alemão: Kinder-und
Hausmärchen), seguindo-se o segundo volume em 1815. Em comemoração a essa data
e ao feito dos Grimm, a Editora Cosac&Naify acaba de lançar Contos
Maravilhosos Infantis e Domésticos, que reúne os dois volumes dos textos
originais traduzidos por Christine Röhrig e com ilustrações em cordel de
J.Borges.
Os Irmãos Grimm
Jacob Grimm (1785-1863) e Wilhelm Grimm (1786-1859)
nasceram na cidade de Hanau (no estado de Hessen, na região central da
Alemanha), de uma família de pastores da Igreja Calvinista Reformada. Os pais,
Philipp Wilhelm Grimm e Dorothea Grimm, tiveram nove filhos, dos quais apenas
seis chegaram à idade adulta. A infância dos irmãos foi vivida na aldeia de
Steinau, onde o pai atuava como funcionário de Justiça e Administração do Conde
de Hessen.
A morte súbita do pai em 1796 lançou a família na
miséria, e os dois filhos mais velhos, Jacob e Wilhelm, foram enviados em 1798
para morar com a tia, na cidade de Kassel, onde cursaram o Ensino Médio no
Friedrichsgymnasium, como preparo para o estudo do Direito, que ambos iniciaram
a seguir, junto à Universidade de Marburg.
Um de seus professores, Friedrich Carlvon Savigny, percebeu
a disposição dos irmãos para a pesquisa de antigos manuscritos e documentos
históricos e colocou à disposição sua biblioteca particular, familiarizando-os
assim com as obras do Romantismo e com as cantigas de amor medievais. Nesse
momento, foi decisivo para os irmãos o pensamento de Johann Gottfried Herder,
que com sua antologia de Canções Populares (Volkslieder, 1878/1879) havia
apontado para a importância cultural da poesia popular contemporânea e de
tempos remotos.
Um evento de natureza política ainda concorreu para
moldar a trajetória dos irmãos. Com o avanço do exército francês pelos
territórios alemães adentro, em 1807 a cidade de Kassel passou a ser governada
pelo irmão de Napoleão, Jérôme Bonaparte, que a designou capital do
recém-instaurado Reino da Vestfália. Essa situação criou as condições para que
os Grimm voltassem o olhar para a Idade Média de maneira muito distinta do
fascínio manifestado até então pelo Romantismo. Ao contrário dos românticos,
que tendiam a idealizar a Idade Média, os Grimm focalizaram o passado em busca
de explicação para as condições vividas no presente pelas terras alemãs (que
culturalmente se submetiam aos modelos vigentes na França e que viriam a se
unificar política e economicamente como país, formando a Alemanha de hoje,
apenas em 1871, muitos anos após a morte de ambos os irmãos).
O medievalismo dos Grimm tingiu-se, assim, da conotação
de resistência à ocupação estrangeira e pautou-se pela tentativa de recuperação
da identidade nacional por meio da busca de suas raízes culturais. Tais raízes
estariam, justamente, no reservatório linguístico e no material folclórico de
origem popular. Como resultado, os Grimm dedicaram suas vidas à criação de um
dicionário filológico da língua alemã, à elaboração de livros sobre gramática e
história da língua alemã, à reunião de mitos, lendas, baladas e, é claro,
contos de fadas. Os contos foram sendo coletados, revisados e divulgados ao
longo de décadas, desde 1812 até a edição definitiva, em 1857, última em vida
dos irmãos.
A coleta de contos populares
Após os estudos universitários, os Grimm fixaram-se em
Kassel e passaram a ganhar a vida como bibliotecários. Por intermédio de seu
mentor, o professor Von Savigny, eles foram contatados pelos escritores Achim
von Arnim e Clemens Brentano para que colaborassem na realização de A
Cornucópia Mágica do Menino (3 vols., 1805-1808), antologia de canções
populares com um anexo contendo cantigas infantis. A cooperação nesse projeto
serviu-lhes de treino, e os irmãos ganharam experiência na coleta e publicação
de textos antigos tanto de cunho literário quanto popular.
O contato com Brentano foi decisivo para chamar a atenção
para o filão das narrativas populares registradas em livros antigos. Através de
Brentano, os Grimm também tomaram conhecimento da obra Conto dos Contos, em que
Giambattista Basile reuniu narrativas por ele colhidas da oralidade popular na
Itália, antes da publicação dos contos de Perrault na França (1697).
Como bibliotecários, os Grimm tinham fácil acesso a
textos e manuscritos raros, e dentro em pouco descobriram um volume de Johann
Michael Moscherosch contendo o conto O Camundongo, o Passarinho e a Linguiça.
Daí em diante os irmãos nunca abandonaram a prática de buscar narrativas em
fontes impressas, passando inclusive a acolher textos publicados em sua época,
como O Pescador e sua Mulher e O Pé de Zimbro, coligidos por Philipp Otto Runge
e publicados em jornal em julho de 1808.
Logo, no entanto, eles passaram a buscar fontes orais e,
para isso, recorreram a amigos e conhecidos. Dessa forma, além das 16
narrativas absorvidas de publicações e manuscritos, o primeiro volume de contos
de fadas dos Grimm, publicado em 1812, contém contribuições de Dorothea Wild e
suas quatro filhas (família do farmacêutico local; uma das filhas, também
chamada Dorothea, casou-se em 1825 com Wilhelm Grimm), das irmãs Hassenpflug
(descendentes de franceses huguenotes e amigas de Charlotte, a única irmã dos
Grimm), de Johann Friedrich Krause (filho de sapateiro e vigia, que recebia de
Wilhelm uma peça de roupa usada em troca de cada narrativa que ele lhe contava)
e de Friederike Mannel (filha de pastor e professora de escola privada em
Allendorf), entre outros.
A contribuição de maior envergadura, porém, veio de
Katharina Dorothea Viehmann (1755-1815), apelidada de “Viehmännin”. Ela era a
mulher de um alfaiate da aldeia de Niederzwehren e costumava dirigir-se a
Kassel para vender frutas, indo constantemente à casa dos Grimm para
abastecê-la de ovos e verduras. É dela que veio grande quantidade de contos, e
muitas vezes suas versões acabaram substituindo outras que haviam sido
coletadas anteriormente e até já publicadas. No total, ela forneceu 37 contos,
os quais formaram o miolo do segundo volume, publicado em 1815. Ela foi a maior
tributária dos Grimm, ficando conhecida como “a mulher dos contos de fadas”
(Märchenfrau).
Ao contrário do que usualmente se assume, os Grimm não
viajaram pelas áreas rurais da Alemanha à cata de contos, tampouco se sentaram
ao pé de velhas camponesas para escutar suas narrações. Estudiosos e letrados,
os Grimm procederam a um complexo trabalho de depuração dos textos, que não
apenas os adequou ao público-alvo do espaço doméstico da classe média burguesa,
como também lapidou seu caráter estético, potencializando assim seu efeito
artístico.
As versões dos contos dos Grimm
O Romantismo alemão conferiu grande importância aos
contos de fadas e ao elemento mágico em geral, ou maravilhoso, conforme atestam
as obras de escritores como Ludwig Tieck (O Loiro Eckbert), Clemens Brentano
(Contos de Fadas do Reno) ou Friedrich de la Motte Fouqué (Ondina). Na obra
desses autores, o conto de fadas popular é tratado como uma matriz ou fonte de
inspiração para a livre criação ou invenção de histórias.
Os Grimm, ao contrário, nunca alteraram enredos ou
adicionaram novos personagens. Isso não significa que eles tenham tratado as
narrativas recolhidas com total imparcialidade ou fidelidade científica.
Guiando-se por sua sensibilidade literária e também por
um “ideal de conto”, os irmãos, em especial Wilhelm, pretendiam trazer a lume
um material que mais se aproximasse da “narrativa primordial”, a partir da qual
teriam sido geradas as várias versões que circulavam na oralidade. Quando
começaram a se ocupar das narrativas de cunho antigo e popular, os Grimm logo
perceberam as gritantes semelhanças entre certos contos distintos, a exemplo de
A Gata Borralheira e Mil Peles, ou ainda entre contos e mitos, como A Bela
Adormecida e o mito de Sigfried (ou Sigurd, na Saga dos Volsungos), herói que
resgata uma valquíria de seu sono secular. Os Grimm consideravam que é possível
depreender de tais similaridades uma origem compartilhada, ou a existência, num
passado remoto, de uma narrativa primordial que teria se modificado ao longo
das gerações de contadores, dando origem a um múltiplo de narrativas no
presente.
Assim, quando um conto lhes chegava narrado por vários
contadores, os Grimm selecionavam a versão mais próxima da forma primitiva ou
original. Outras vezes mesclavam partes de uma versão com outras, a fim de
alcançar o mesmo objetivo. Eles não tinham em vista a cristalização dos contos
na forma exata em que os tinham ouvido, mas a conservação de um protótipo
ideal, em que estaria espelhada a ascendência comum das múltiplas formas da
narrativa popular oral: contos de fadas, mitos, fábulas, lendas, sagas... Os
contos foram sendo revistos a cada nova edição, buscando-se destilar sua
essência prototípica. Ao longo dos anos, contos recém-coletados iam sendo
acrescidos à antologia, outros foram excluídos, o que, no final, levou a um
gradual aumento no número de narrativas. Em 1857, a sétima e última edição
preparada por Wilhelm Grimm continha 200 contos de fadas e dez legendas
infantis.
Rejeitando alterações profundas e arbitrárias, os Grimm
realizaram diversas mudanças: expandiram o tamanho de descrições, buscando
torná-las mais vívidas e cativantes; substituíram o discurso indireto (fala do
narrador) pelo direto (fala de personagens); reduziram as orações subordinadas,
simplificando assim os períodos que antes estavam longos demais; subtraíram
repetições inúteis e expressões desajeitadas; adaptaram a expressão em dialeto,
passando-a para o alemão-padrão. Essa atuação sistemática sobre a forma dos
contos resultou em uma antologia dotada de um estilo bastante uniforme e
coerente que, hoje em dia, faz dos contos um verdadeiro modelo do que seria um
“típico conto de fadas”.
KARIN VOLOBUEF
* Doutora em Literatura Alemã, professora do Departamento
de Letras Modernas da Unesp (Araraquara), pesquisa conto de fadas maravilhoso e
é autora, entre outros, de Mito e Magia (2011)
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